Entrevista com a presidente da Abong, Vera Masagão, publicada no Diario de Pernambuco de hoje.
Por Marcionila Teixeira.
Marco regulatório para as ONGs
Há vinte anos, Vera Masagão apostou em uma ideia que deu certo. Mudar vidas através de ações nas áreas de educação, cultura e juventude. A ONG Ação Educativa, de São Paulo, ganhou corpo e hoje é uma das principais do país. Formada em letras, Vera também assumiu, há três anos, a direção da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong). Tarefa grandiosa diante do número de entidades do tipo espalhadas pelo país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 290 mil no país. O grande desafio da Abong hoje, explica Vera Masagão, é a implantação de um marco regulatório que defina as leis e diretrizes que regulamentem o setor. A ideia é criar um ambiente favorável e seguro para a atuação de ONGs no controle social das entidades públicas e no acesso a recursos públicos de forma sustentável e transparente. “Em qualquer país democrático do mundo, as ONGs recebem dinheiro do governo para prestar serviços públicos. O governo pode oferecer verba para as ONGs porque o dinheiro não é do governo, é da sociedade”, defende. Nesta segunda-feira, a Abong promove encontro para debater principalmente o marco regulatório. Além de representantes e associados de diversas ONGs, participarão parlamentares federais e estaduais e representantes dos governos municipal e estadual. O evento será na sede da Gestos e coordenado por Vera Masagão, diretora nacional da Abong, e Alessandra Nilo, diretora estadual.
Saiba mais
290,7 mil fundações privadas e associações sem fins lucrativos existem no Brasil
72,2% das instituições mapeadas não possuem sequer um empregado formalizado, apoiando-se em trabalho voluntário e prestação de serviços autônomos
Nas demais, estavam empregadas 2,1 milhões de pessoas
O termo ONG foi usado pela primeira vez em 1950 pela Organização das Nações Unidas (ONU).
“O governo não valoriza o nosso trabalho”
Como um marco regulatório pode melhorar a prestação de serviços das ONGs à sociedade?
Há várias ONGs que prestam serviços diretamente à população. Muitas delas recebem dinheiro público porque estão prestando um serviço público, como a oferta de uma creche ou de um hospital. Cada vez mais também surgem ONGs que não fazem atendimento diretamente à população, mas sim projetos de geração de renda, de educação, de cidadania, de capacitação profissional ou mesmo realizam controle social das políticas públicas e analisam as contas do governo. São várias as possibilidades de atuação de uma ONG. Em qualquer país democrático do mundo, as ONGs recebem dinheiro do governo para prestar serviços públicos. Não atuamos somente com voluntários. Por isso, lutamos pelo marco regulatório, pois as ONGs ganham autonomia e fica garantido que o dinheiro público não será repassado somente para quem é amigo do governo. O marco regulatório define as regras do jogo.
Mas como fazer o controle de um governo, se você recebe dinheiro dele para funcionar?
O governo pode oferecer verba para as ONGs porque o dinheiro não é do governo, é da sociedade. No entanto, concordo que não é legal ser financiado 100% pelo governo. O financiamento também pode vir de doações de empresas, de institutos internacionais ou de outros níveis de governo. Também é importante não depender somente do empresariado para que a atuação da ONG não fique limitada.
Como funciona esse financiamento do governo atualmente?
Se o governo federal quer trabalhar com ONGs para enfrentar a violência contra a mulher, por exemplo, ele precisa publicar edital. No entanto, nos outros níveis de governo – municipal e estadual – não há esse procedimento. E mesmo no governo federal, precisaria haver regras para todos concorrerem, como a comprovação de pelo dois anos de atuação na área. Existe uma ideia de que a ONG não pode pagar o próprio pessoal para fazer o trabalho, pois teme-se problemas ligados à questão trabalhista ou desvio de recursos para outros fins. Há solicitação para que o serviço seja terceirizado, mas isso não faz sentido, pois uma ONG é uma associação de pessoas qualificadas. Dessa forma, há um estímulo a não contratação de funcionários. Uma outra regra seria a implantação de prazos para o governo avaliar as contas e aprová-las. Há contas com mais de dez, vinte anos com atraso na análise. A falta de análise, porém, não impede a liberação de verba. Isso acontece somente no caso de questionamento das contas.
Como estimular as doações às ONGs?
É preciso uma legislação que incentive a doação. Hoje, quando é identificado qualquer caso de corrupção em ONGs, imediatamente suspende-se o financiamento de todas. Só que o governo federal não consegue sobreviver sem a ação das ONGs, mas a relação está difícil, pois o clima é de caça às bruxas.
As ONGs brasileiras vivem uma crise de redução no financiamento de instituições do exterior, que passaram a entender que o Brasil já cresceu economicamente a ponto de andar com as próprias pernas. Como vocês enfrentam essa situação?
O Brasil passou a ser visto como um país que já tem condições de sustentasr suas ONGs, no entanto, não temos marco regulatório e precisamos de uma lei que incentive a doação. Poderíamos ter mais justiça fiscal na taxação de grandes fortunas e de heranças, por exemplo. Há países que não exigem taxação a pessoas que vão deixar herança pequena. No Brasil, no entanto, todo mundo paga 4% de imposto, seja rico ou pobre. Na Europa, os mais ricos desembolsam até 30%. Hoje, quem tem incentivo são as grandes empresas. Elas doam e depois deduzem do imposto. No caso da pessoa física, somente as que fazem a declaração no modelo completo podem doar, ou seja, as que ganham bem. Mas isso é uma prática ainda pouco comum, pois não temos essa cultura de doação. Outra sugestão é simplificar os tributos. As microempresas têm desoneração fiscal por serem pequenas, mas as ONGs têm que pagar outros impostos, cota patronal do INSS, previdência. Ou seja, uma pequena ONG paga o mesmo que uma grande empresa.
Como anda o processo de instalação do marco regulatório no governo federal?
Em 2010, durante a campanha para a Presidência da República, a então candidata Dilma Rousseff fez uma plataforma exigindo a instalação de um marco regulatório. Ela se comprometeu a lutar por isso, mas ganhou as eleições, disse que no prazo de um ano tomaria as providências e em três anos não fez nada do que prometeu e nem vai fazer. Dependemos do governo federal, pois a ideia é que seria uma lei nacional. Trabalhamos seis meses em um grupo de trabalho com 14 pessoas da sociedade civil e 14 do governo federal e preparamos um projeto de lei para regulamentar o repasse de dinhero do governo para a sociedade civil, além de uma série de outras propostas. Continuamos cobrando da presidência, mas trabalhamos também no Legislativo para a lei sair. Existe uma série de projetos no Senado e na Câmara que foram incrementados com propostas nossas. No entanto, se a presidente apresenta via executivo, o peso é maior.
Qual a percepção dos estrangeiros sobre o trabalho das ONGs brasileiras?
Temos fama de ser uma sociedade civil ativa, protagonista, que lutou pela redemocratização, mas infelizmente o governo não valoriza o nosso trabalho. Temos várias políticas públicas que se tornaram famosas pelo mundo afora que foram construídas com a ajuda de ONGs, inclusive as relacionadas ao combate à Aids.
Como você vê o futuro das ONGs sem um marco regulatório?
Acredito que as pessoas sempre irão se associar para lutar por alguma causa e arrumarão recursos, de uma forma ou de outra. Mas se há um marco regulatório, as organizações ficam mais fortalecidas. Inclusive, vão colaborar com o governo na realização de políticas públicas em várias áreas, mas também vão criticar o estado e todos saem ganhando. Todo país democrático deve entender que é bom manter o lado crítico. Sem o marco, a gente fica cada vez mais frágil.
No debate desta segunda-feira, além do marco regulatório, que outros temas vocês deverão tratar?
O encontro vai abordar temas como a questão da importância política e econômica das ONGs, principalmente as ONGs que atuam na defesa de direitos humanos e de bens comuns. Além disso, também será debatido o papel das ONGs na fiscalização da administração pública e controle social, um papel que a movimentação recente nas ruas demonstra que precisa ser cada vez mais fortalecido e aprimorado no Brasil.